segunda-feira, 28 de setembro de 2009



Voltei demasiado sensata,
compreensiva, abnegada,
perfeita até à náusea.
Deixo que te passeies com o teu ar de semental
ao banho, à cozinha por um copo de água.
Se me perguntas
respondo que sim para não entrar em detalhes,
para que durmas tranquilo e rendas na oficina.
É que a mentira é amiúde mais fácil e espontânea,
assim como estarmos juntos.
E o meu corpo é muito confortável,
com esquinas arredondadas
e formas ergonómicas
(sem falar do muito que alberga
e do pouco que pesa).
Não pede nada, não faz perguntas
e prefere desconhecer.
Acolchoado de amor,
há muito que não sente a cabeça.


Miriam Reyes

Fiozinho D'Água







Um fiozinho d' água
Desviou de um riacho
Veio vindo serra abaixo
E passou no meu pomar,
Encontrou uma pedra
Ficou sua companheira
Brincaram de cachoeira
E aqui ficaram pra morar,
E hoje da janela
Eu contemplo a cachoeirinha
Que ficou minha vizinha
Desde que a vi nascer
Seu murmúrio doce
É um verdadeiro canto
É quem me serve de acalanto
Para eu adormecer



João Pacífico



"Enfeite-se com margaridas e ternuras e escove a alma com leves fricções de esperança. De alma escovada e coração estouvado, saia do quintal de si mesmo e descubra o próprio jardim. Acorde com gosto de caqui e sorria lírios para quem passe debaixo da sua janela. Ponha intenções de quermesse em seus olhos e beba licor de contos de fada. Ande como se o chão estivesse repleto de sons de flauta e do céu descesse uma névoa de borboletas, cada qual trazendo uma pérola falante a dizer frases sutis e palavras de galanteio. "


(Artur da Távola, pseudônimo de Paulo Alberto Moretzsonh Monteiro de Barros)


A alma é uma borboleta...
há um instante em que uma voz
nos diz que chegou o momento
de uma grande metamorfose.

[Rubem Alves]

" Se eu tivesse mais alma pra dar
Eu daria, isso pra mim é viver"


(Linha do Equador - Djavan)



De delicadeza me construo.
Trabalho umas rendas
Uma casa de seda para uns olhos duros.
Pudesse livrar-me da maior espiral
Que me circunda e onde sem querer me reconstruo!
Livrar-me de todo olhar que quando espreita, sofre
O grande desconforto de ver além dos outros.
Tenho tido esse olhar. E uma treva de dor
Perpetuamente.
Do êxodo dos pássaros, do mais triste dos cães,
De uns rios pequenos morrendo sobre um leito exausto.
Livrar-me de mim mesma. E que para mim construam
Aquelas delicadezas, umas rendas, uma casa de seda
Para meus olhos duros.


Hilda Hilst




Cai chuva do céu cinzento
Que não tem razão de ser.
Até o meu pensamento
Tem chuva nele a escorrer.
Tenho uma grande tristeza
Acrescentada à que sinto.
Quero dizer-ma mas pesa
O quanto comigo minto
Porque verdadeiramente
Não sei se estou triste ou não.
E a chuva cai levemente
(Porque Verlaine consente)
Dentro do meu coração.


Fernando Pessoa


Boa noite!


Minha flor minha flor minha flor. Minha prímula meu pelargônio meu gladíolo meu botão-de-ouro. Minha peônia. Minha cinerária minha calêndula minha boca-de-leão. Minha gérbera. Minha clívia. Meu cimbídio. Flor flor flor. Floramarílis. Floranêmona. Florazálea. Clematite minha. Catléia delfínio estrelítzia. Minha hortensegerânea. Ah, meu nenúfar. Rododendro e crisântemo e junquilho meus. Meu ciclâmen. Macieira-minha-do-japão. Calceolária minha. Daliabegônia minha. Forsitiaíris tuliparrosa minhas.Violeta... Amor-mais-que-perfeito. (...)


Carlos Drummond de Andrade