terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Tempo


O tempo é estático,
Somos nós que passamos.
Os amores não acabam
Somos nós que de amores mudamos.
As flores são eternas
Nós que as vemos murchando.
Toda dor é perene
Somos nós que nos acostumamos.
Toda hora é para sempre
Pena, que sempre abreviamos.
Toda chegada é partida, e é definitiva.
Somos nós que nos ausentamos.
Todas as lágrimas são repetidas
Somos nós que de novo derramamos.
Todas as respostas estão prontas
É nas perguntas que erramos
Todos os mortos estão vivos, e serenos
Fomos nós... que morremos.
(Tonho França)

Dentre todas as Almas já criadas



Dentre todas as Almas já criadas -
Uma - foi minha escolha -
Quando Alma e Essência - se esvaírem -
E a Mentira - se for -

Quando o que é - e o que já foi - ao lado -
Intrínsecos - ficarem -
E o Drama efêmero do corpo -
Como Areia - escoar -

Quando as Fidalgas Faces se mostrarem -
E a Neblina - fundir-se -
Eis - entre as lápides de Barro -
O Átomo que eu quis!
(Emily Dickinson)

O Prazer do difícil



O prazer do difícil tem secado
A seiva em minhas veias. A alegria
Espontânea se foi. O fogo esfria
No coração. Algo mantém cerceado
Meu potro, como se o divino passo
Já não lembrasse o Olimpo, a asa, o espaço,
Sob o chicote, trêmulo, prostrado,
E carregasse pedras. Diabos levem
As peças de teatro que se escrevem
Com cinqüenta montagens e cenários,
O mundo de patifes e de otários,
E a guerra cotidiana com seu gado,
Afazer de teatro, afã de gente,
Juro que antes que a aurora se apresente
Eu descubro a cancela e abro o cadeado.
(William B. Yeats)

E de novo acredito que nada do que é importante se perde verdadeiramente.
Apenas nos iludimos, julgando ser donos das coisas, dos instantes e dos outros.
Comigo caminham todos os mortos que amei, todos os amigos que se afastaram, todos os dias felizes que se apagaram.
Não perdi nada, apenas a ilusão de que podia ser meu para sempre.
(Miguel Sousa Tavares)

Me entrego a tus brazos
Con miedo y con calma
Y un ruego en la boca
Y un ruego en el alma
(Lhasa de Sela)


Até por fim perceber que as lágrimas
não precisam dos olhos e que chorar
é apenas o modo
como o tempo docemente nos fuzila.
(Manuel de Freitas)

talvez nunca tenha entendido a minha maneira
de amar ou
talvez nunca
tenha tido uma maneira de amar ou uma única
maneira de amar – talvez nunca
tenha sabido o amor de uma maneira – a forma
e a proporção
a geometria – mas estou certo que amei
sempre tarde demais ou num cedo incerto de
tanta impossibilidade de me encontrar amando
seja o que for
o amor.
(Frederico Mira George)

Se acaso...


Se acaso
Sentir saudades
Me ver em tudo que olhar
E der uma vontade louca
De me amar
Me chame...
Tudo que mais desejo
É te abraçar

E se ouvir nossa música
Será um sinal dos deuses
Sempre que ela tocar
Estarei a sussurrar mil vezes
Pedindo pra você voltar

Se acaso
Sentir um perfume
Me sentindo em todo lugar
E der uma vontade louca
De me amar
Me chame...
Tudo que mais quero
É te beijar.
(Sirlei L. Passolongo)


Durante a primavera inteira aprendo
os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
correr do espaço -
e penso que vou dizer algo cheio de razão,
mas quando a sombra cai da curva sôfrega
dos meus lábios, sinto que me faltam
um girassol, uma pedra, uma ave - qualquer
coisa extraordinária.
Porque não sei dizer-te sem milagres
que dentro de mim é o sol, o fruto,
a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,
o amor,
que te procuram.
(Herberto Hélder)

Mas que queremos da vida? É a vida?
O que se procura em cada segundo para se perder
em cada segundo? O tempo, assim, de nada
nos serve. Um dia, dando por nós próprios,
perguntamo-nos o que fizemos, por onde
andámos, que cidades e casas percorremos,
sem que uma resposta nos satisfaça. A
vida, então, limita-se a ser o que fez
de nós, sem que o tenhamos desejado, e
nada pode ser feito para voltar atrás, nem
para restituir os passos trocados de
direcção, as frases evitadas no último
extremo, o olhar que se desviou quando
não devia. Ah, sim - e o amor? É isso
que queremos da vida? É verdade: cada um
dos abraços que se deram, contando cada
instante; o rosto lembrado no auge do
prazer, quando um súbito sol desponta
dos seus lábios; os cabelos presos nas
mãos, como se elas prendessem o feixe
da eternidade... Assim, a vida poderá
ter valido a pena. É o que fica: o que
nos foi dado e o que damos, sem que nada
nos obrigasse a dar ou a receber, o puro
gesto do acaso na mais absoluta das
obrigações. Então, volto a perguntar: que
outra coisa queremos da vida?
(Nuno Júdice)




Da minha solidão


Hoje deitei-me ao lado da minha solidão.
O seu corpo perfeito, linha a linha,
derramava-se no meu, e eu sentia
nele o pulsar do próprio coração.

Moreno, era a forma das pedras e das luas.
Dentro de mim alguma coisa ardia:
a brancura das palavras maduras
ou o medo de perder quem me perdia.

Hoje deitei-me ao lado da minha solidão
e longamente bebi os horizontes.
E longamente fiquei até sentir
o meu sangue jorrar nas próprias fontes.
(Eugénio de Andrade)

"Caminhante, tuas pegadas
são o caminho, nada mais.
Caminhante, não há caminhos,
faz-se o caminho ao andar."
(Antônio Machado)

Quem nesse momento pensa no ar? Ninguém. E, no entanto, todos nós estamos respirando. O ar é nossa vida e não precisamos pensar nele nem dizer o seu nome para que ele nos dê vida. Deus é assim, é como o vento. Sentimos na pele quando ele passa, ouvimos a sua música nas folhas das árvores e o seu assobio nas gretas das portas. Mas não sabemos de onde vem nem para onde vai. Na flauta o vento se transforma em melodia. Mas não é possivel engarrafá-lo. Mas as religiões tentam engarrafá-lo em lugares fechados a que eles dão o nome de "casa de Deus". Mas se Deus mora numa casa estará ele ausente do resto do mundo? Vento engarrafado não sopra...


Rubem Alves

Não basta abrir a janela
Para ver os campos e o rio.
Não é bastante não ser cego
Para ver as árvores e as flores.
É preciso também não ter filosofia nenhuma.
Com filosofia não há árvores: há ideias apenas.
Há só cada um de nós, como uma cave.
Há só uma janela fechada, e todo o mundo lá fora;
E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse,
Que nunca é o que se vê quando se abre a janela.


© 1924, Alberto Caeiro (Fernando Pessoa)
From: Poesia
Publisher: Assírio & Alvim, Lisbon, 2001

Heroínas



Já fui Ceci
envolta em plumas e penas.
O sonho de Peri.
Vivi delicias plenas

e suplícios,
transvertida em Lúcia.
Lucíola e seus
vícios.

Ressaca tomou-me os olhos
de Capitu.
Nadei em ondas revoltas.
Iracema de Caramuru.

Cabelos negros asa de graúna,
lábios de mel.
Nos confins do pampa.
Coxilha e céu.

Fui Ana Terra.
Fui Bibiana,
e no sertão Tereza.
Sempre Tereza...
Cansada de Guerra.

Sônia (Anja Azul)



A carícia Perdida


Sai-me dos dedos a carícia sem causa,
Sai-me dos dedos...
No vento, ao passar,
A carícia que vaga sem destino nem fim,
A carícia perdida, quem a recolherá?

Posso amar esta noite com piedade infinita,
Posso amar ao primeiro que conseguir chegar.
Ninguém chega.
Estão sós os floridos caminhos.
A carícia perdida, andará... andará...

Se nos olhos te beijarem esta noite, viajante,
Se estremece os ramos um doce suspirar,
Se te aperta os dedos uma mão pequena
Que te toma e te deixa, que te engana e se vai.

Se não vês essa mão,
nem essa boca que beija,
Se é o ar quem tece a ilusão de beijar,
Ah, viajante, que tens como o céu os olhos,
No vento fundida, me reconhecerás?
(Alfonsina Storni - Tradução de Carlos Seabra)